Minha vó faleceu no final do ano passado, mas antes de virar um cadáver mal maquiado padeceu acamada com sondas, mas um pouco antes de ser traída pela própria corrente sanguínea, possuía um raciocínio rápido, ligeiro e desconfiado, até demais. Quem tem família grande sabe que a quantidade de filhos é inversamente proporcional à ajuda oferecida. Como se toda aquela renca projetada para ajudar na colheita desaparecesse. Logo, ainda que a quantidade ultrapassasse os dedos de uma mão, a ajuda veio de poucos, no caso, principalmente, da mãe deste que preenche o parágrafo. Se por um lado estava presente nas minhas fotos desde a infância, sua ausência era constante nos projetos dos outros parentes e, uma vez na casa destes, era transmutada de forma quase kafkiana em um imóvel. Um abajur de idade avançada ou um criado mudo com polpudo investimento bancário. Enquanto isso, ainda me resumindo a um mero neto, ganhei habilidade na monta-desmonta de cadeira de rodas. Minha destreza não vista ao tentar fazer baliza era revelada ao subir com a matriarca pelas rampas deslizantes de shoppings e calçadas acidentadas de centros urbanos. De alguma forma uma vingança inconsciente se formava. Não era declarada, nem desarrazoada a goles de amontillado. Mas uma conduta que deixava interessante a reação da parentada ao aguardar uma mesmice de rotina idosa e receber com surpresa um ato inovador. Aviso que não estou tentando nem de longe construir a imagem de uma família perfeita ou neto caridoso, mas pelo menos a tentativa, um gesto fugindo da inércia de ver o mais velho definhar como em um deleite da obra do destino. Mal sabiam aqueles inertes parentes que os chás da tarde foram substituídos por idas ao cinema, ou as noites de novela por idas a restaurantes mexicanos. Sim, tiramos fotos com sombreiros! Até mesmos as saudosas e gourmetizadas paletas mexicanas foram alvo das investidas. Também consegui confissões sobre saudades dolorosas e peculiares, como as fotos preto e branco que mais parecem um “check list” de obituário e o flerte com o ateísmo (devo ter puxado dela, talvez), com um senso de humor um tanto sarcástico e seco. O tempo seguiu a passadas rápidas e a peso de chumbo nas juntas e saúde. Muitos foram os desafios do ceifador, parecia uma perseguição (e na verdade é). Se um tombo já trazia dias de internação, uma tosse um pouco mais carregada era sinônimo de overdoses de antibióticos. Ainda assim, a vingança continuava. Durante o expediente de trabalho meu celular tocou. Era o meu irmão para avisar o fim daquela perseguição e o abraço final. Antecipei a visita a minha terra natal. Era fim da noite. Como é estranho velório a noite. As solidões de todos presentes parecem ressaltar. “Solidões”, pois todos sabem que a morte é uma viagem solitária. Diante da avó encaixotada minhas poucas lágrimas deram lugar a uma risada inesperada. Ela estava maquiada como uma boneca russa ou algo tão pitoresco quanto. Se viva, desmancharia aquela pintura com gestos bruscos e talvez alguns palavrões. Acompanhei o velório de canto. Lendo um livro e alheio aos consanguíneos que a vingança felizmente me afastou. Segue o enterro. Enterro de idosos quase centenários é peculiar pela ausência de contemporâneos. Não há companheiros de colégio ou colegas de trabalho, mas uma geração de estranhos recém-nascidos. Para seguir ao túmulo, o caixão foi posto em uma espécie de carrinho de transporte. Chovia e tudo indicava que o coveiro o levaria sozinho pelo último trajeto. Não haveria pessoas em volta do caixão, pois ninguém queriam se molhar. Naquele momento me aproximei para fazer as vezes, justamente quando um dos desidiosos filhos apareceu. Dei um passo para trás, cedendo a vez. Reduzi a velocidade para ter uma boa vista e concluir o último ato da vingança. Finalmente, aquele parente que não a levava a lugar algum, pode levá-la ao túmulo. P.S.: Meu próximo romance foi escrito em memória de minha vó, Maria da Conceição Karras
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